Tive a sorte de cruzar a minha vida com a dela.
Desde que me lembro de ser "gente", ali estava ela, uma figura, , sempre sorridente, carinhosa, com o cabelo negro em poupa que nunca dispensava de um lenço preto a acompanhar a cor da saia , da blusa e da malinha, nas suas saídas à vila. Pequena, magra, com um sorriso a emoldurar os poucos dentes que ainda tinha, fundas eram as rugas do rosto, como uma marca do tempo, da longa, dura e duradoira vida no campo.
Foto retirada da Internet: Fontelonga
Nasceu numa terrinha chamada Fontelonga, uma aldeia por terras de Mêda, distrito da Guarda, numa modesta família camponesa. Contou-me um dia, que era a segunda filha mais velha. Recorda-se de ter outra irmã, que desde muito nova partiu para o Brasil e nunca mais teve notícias dela...
Cresceu no campo e pouco foi o tempo que lidou com as letras, apenas o suficiente para ler e escrever, pelos menos o seu nome. Bordar, costurar, cozinhar, cavar, lavar, passar, cuidar da família, dos animais, das plantas... foi tudo o que aprendeu enquanto moça, o suficiente para ser considerada na terra uma boa moça e "prendada".
Aldeia de Longroiva
Cedo casou e foi viver para a casa do marido, numa Quinta , pertencente à freguesia de Longroiva, do concelho de Mêda. Nessa quinta viviam praticamente todos os irmãos do marido, juntamente com as respectivas famílias. A maioria construídas em granito à maneira beirã , com loja por baixo (para os animais) e balcão para aceder à parte da habitação, no piso superior. Expostas em frente uma das outras, formam uma única rua.
Era do campo que todos tiravam o seu sustento. Cada um tinha a sua hortinha e os seus "prédios",ao longo da Quinta. Produziam vinho, batata, milho, trigo, centeio, azeite e amêndoa. As mulheres tinham um forno comunitário, onde faziam o pão, a bola e os biscoitos. Todos tinham animais, como o macho (cruzamento do burro e o cavalo), galinhas, porcos, ovelhas, cabras e os cães.
O único meio de transporte que tinham era a carroça, puxada pelo macho, mais recentemente, apareceram os tractores para ajudar na lavoura e os veículos que dispensam a carta de condução vulgarmente designados por "papa reformas". Com estes transportes iam, normalmente os homens, à vila às segundas feiras ao mercado, enquanto as mulheres ficavam pela Quinta. Uma vez por semana ia à Quinta o merceeiro vender o que lhes fizesse falta, como o arroz e a massa.
Foi neste contexto que ela aprendeu a viver e a lidar. Com as coisas da casa, do campo, da família., que formou: teve quatro filhos, um dos quais faleceu ainda pequeno. Lá em casa vivia então, o marido, dois rapazes , uma menina e ela, a mãe e a dona da casa.
Cada um com a sua personalidade, fortemente marcada pela cultura beirã, onde o homem é que manda na casa, mesmo sem saber ler nem escrever. Ela esteve sempre lá, nos momentos bons e nos momentos menos bons da família. Pela calada foi o elo da família, o barco que, sábia e discretamente conduzia até ao outro lado do rio.
Fruto da segunda geração dessa família, cruzei a minha vida com ela, desde que nasci.
Ela era a minha avó!
E chamava-se Maria Otilia Canadinhas Falhas.
Chamava-se porque já não está presente entre nós, faz muito pouco tempo.
Memórias como...
... a chegada à Quinta, de carro, com o cão a correr atrás de nós para dar as boas vindas e ver a sua alegria rasgada no rosto, em frente à lareira, onde cozinhava o jantar nas suas panelas de ferro e ouvir a frase: " Oh minha filha, estás tão magrinha! Tens que comer! Come o pão! Come biscoitinhos da avó!"
Foto de recriação de um almoço à moda antiga: Com uma fogueira e panelas de ferro
Memórias como...
aquele dia em que cheguei e estava fazer as suas farinheiras, depois da matança do porco e noutro em que estava a fazer o queijo da cabra...
Foto de recriação : uma senhora a fazer o queijo da cabra, à moda antigaMemórias como...
... aqueles dias em que nos reuniamos no campo para semear e arrancar batatas, colher as uvas nas vindimas, ou simplesmente para ir à horta, colher as alfaces, os tomates e as frutas da época...
...a apresentação dos dois bisnetos... a alegria sempre que os vê... e a sua persistência em oferecer o pouco dinheiro que tinha, debaixo das barbas do avô, aos netos e bisnetos...
Memórias como aquele último dia que a vi... no funeral do meu avô, em que me disse:
" o avô, coitado lá foi, já não podia com o sofrimento, só chamava por mim, durante a noite"
Nesse dia , a última vez que a vi, vi uma mulher sofrida com uma última convicção e desejo em honra do meu avô: ver cumprida uma tradição, que era oferecer aos pobres a roupa dele, da seguinte forma:
" a pessoa tinha que ir à quinta, a casa do falecido avô, para vestir a roupa completa, da cabeça aos pés e deixar para trás a roupa que tinha no corpo."
Essa tradição cumpriu-se.
Passados particamente três meses de viuvez, ela deixou-nos surprendidos com a sua partida. Foram 80 anos de vida que ela contou.
Em homenagem a ela escrevo e partilho com quem quiser ler sobre esta Mulher, que foi genuinamente beirã durante toda a sua vida, por sinal é a minha avó.
Esta foi a última fotografia que tirámos aos meus avós, uma semana antes do Carnaval, deste ano.
Descansem em paz
***** **** *****Tal como a minha avó, existem e existiram tantas outras, com vidas idênticas à sua.
Esta também é uma homenagem a todas elas!
25 comentários:
Susana, tive que parar de ler o teu texto por diversas vezes pois na minha frente aparecia tudo o que um dia um vivi aí em terras beirãs. A casa com a loja por baixo, o cultivo e a colheita, as vindimas... e tudo isso, sempre, com a força da mulher a determinar os caminhos ainda que o homem pensasse que não. Elas se mantinham firmes na alegria e na dor e sempre nos cuidavam, nos fazendo sentir crianças outra vez.
Parabéns pela homenagem.
Obrigada pelas lembranças.
bom dia Susana.
PS: Hoje sai o Jornal
Pitanga: Não imaginas a emoção que eu tive ao escrever este texto dedicado à minha avó. Ainda são recentes os últimos acontecimentos, a voz dela está bem presente nas minhas lembranças. Parece que foi ontem que ouvi as últimas palavras, longe de imaginar que seria a última vez que a via viva.
Obrigada pelas tuas palavras! Bjs Susana
Amigos e amigas: Hoje à noite vou estar em directo na Rádio Mangulade, para falar a propósito da blogagem de Julho. Se quiseres, podes entrar em sintonia via net:
http://www.radiomangualde.com
E conto com vocês para participarem, na próxima blogagem!
Para saber mais:
http://www.aldeiadaminhavida.blogspot.com
Bjs Susana
Pitanga: Vou ver se consigo o jornal. Bjs
Susana entendo perfeitamente os teus sentimentos. Também tive uma avó assim só que não beirã e sim de Oliveira de Azemeis.
Preciso saber a hora certa deste teu programa na rádio porque tenho 4 horas de atraso em relação a Portugal. Se falares às 7 tenho que estar em casa às 3.
Quanto ao Renascimento, quando fores a Mangualde procura na papelaria Adrião que é muito meu amigo. Tenho a certeza de que lá tem.
Quando falares na rádio saiba que estarei te ouvindo.
beijos do lado de cá
Susana já fui no blog e vi a hora do programa. Estou saindo pra trabalhar e dá tempo de te ouvir quando voltar.
Querida Pitanga: O programa começa a partir das 21.30 e termina por volta das 23H, hora de Lisboa.
Bjs Susana
Uma bela história..
Adorei ler e saber um pouco mais da cultura que desconheço.
Abraços
Susana acabb de te ouvir na Rádio Mangualde e telefonei para lá. Conta comigo na blogagem coletiva.
beijos da Mila
Oi Susana
Bela história, boas recordações, a minha anda colada à tua....
Até breve
Herminia
Pitanga: Fiquei, simplesmente sem palavras! Obrigada pelo teu apoio e amizade!
Posso um colocar um link do teu blogue, como participante?
Bjs Susana
Olavo: Seja bem vindo! Esteja à vontade para redescobrir mais da nossa cultura.
Abraço
Hermínia:
Como disse, esta postagem é dedicada a todas as avós, que tal como ela, muitas das sua geração, do interior de Portugal tiveram um percurso de vida semelhante.
Bjs Susana
Susana podes colocar o link sim. Eu é que não posso colocar selo nem aviso no meu por ser um template antigo, mas me custa mudá-lo, visto que foi criado numa época maravilhosa da minha vida.
Pensei que fossem à Rádio pessoalmente mas vi que a entrevista foi por telefone.
Hoje deparei-me com este site.
Embora nascida em Lisboa, foi na beira que cresci e fez toda a minha formação, especialmente, em Lamego, cujas recordações guardo com muito carinho.
Obrigado por este blogue.
Alcinda
Alcinda:
Seja bem vinda ao clube!
É um prazer tê-la aqui, a apreciar este cantinho. Convido-a a participar neste blogue, com um testemunho seu das vivências por terras beirãs.
E aproveito para dizer que também poderá participar, na blogagem colectiva "Férias na minha terra", e quem sabe ainda possa ganhar o p´rémio, que é uma noite num Hotel de 4 estrelas acabadinho de estrear em Lamego. Para saber mais, consulte o blogue:www.aldeiadaminhavida.blogspot.com
Abraço, Susana
Pitanga, amiga, tudo bem, não há problema! O que interessa é participar! Depois envia o texto e imagem para : aminhaldeia@sapo.pt até 7 de julho.
Em relação à entrevista,na rádio, teve que ser por telefone, pois não tinha como deixar as crianças... De qualquer forma, fiquei agradávelmente surpreendida com o teu telefonema para a rádio a apoiar a minha iniciativa! Fiquei mesmo sem palavras! Ficas no meu coração!
Espero que tenhas gostado da entrevista.
Bjs
Minha querida Susana
Passei para deixar um beijinho e votos de que esteja bem assim como os seus pequeninos.
Não resisti e li a homenagem aos avós e claro me emocionei, por vários motivos, porque também fui neta de avós com vivência identica aos seus e me foram tão queridos, depois porque já vi partir os meus pais, que as minhas flhas também adoravam, e agora sou eu a avó que eu sei que os meus netos amam. Por tudo o que li, não tenho dúvida que ficarão no seu coração para sempre, assim espero aconteça comigo.
Um beijinho com todo o carinho
natalia
Su,
Belíssima homenagem! Temos tanto a aprender com os mais veljos, principalmente com os nossos avós!
Bjos,
Paulinha
Querida Natália: Tenho a certeza que os seus netos têm e terão para sempre um grande carinho e afecto por si. Ainda para mais uma super avó "para a frentex"como você, sempre disposta a parender coisas novas, que para muito é o Bicho papão", como é o caso da internt e das blogagens.
Um grande beijo para si e muito obrigada pelo seu comentário.
Susana
Paulinha: Temos muito que aprender com eles e acredito que muita da sabedoria infelizmente morreu com eles...Por alguma razão , neste momento não se encontra ninguém da nossa família, na quinta, que ourora teve tantas crianças e tanta vida.
Bjs Susana
Natália:
Eu tenho, de facto os meus avós nas minhas memórias...não imaginas a emoção que eu tive ao escrever a homenagem que lhes fiz.
Ainda tenho na cabeça a imagem da última vez que vi o meu avô , que está na fotografia, lá na Quinta e a última vez que vi e falei com a minha avó, no funeral do meu avô... Eles foram, mas as memórias ficam de quem os ama...
Susana
Susana, recebi o teu correio e já seguiu de volta.
boa noite
Então essa saude vai melhor?
Espero bem que sim!
1 bj
Uma bonita homenagem a uma AVÓ que suponho ternurenta.
Sensibilizou-me pelo conteúdo e forma como foi narrada, comoveu-me também pelo paralelismo com as minhas origens igualmente beirãs.
Um beijo
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